Ao observarmos o quanto de tecnologia travamos contato em nosso cotidiano, podemos levantar o seguinte questionamento: estaríamos, nós humanos, nos transformando em cyborgs, segundo as ideias da pesquisadora Donna Haraway (2013)? Esta autora (HARAWAY, 2013, p. 23) afirma que somos cyborgs (“organismos cibernéticos”; junção do prefixo cyber com org de “organismo”) quando usamos certas tecnologias, tais como os anabolizantes, os tênis de corrida que melhoram performance esportiva, remédios, vacinas etc. A autora ainda recorda que “(a)ntes da Guerra Civil americana, não havia –inclusive uma diferenciação entre o pé esquerdo e o direito de um sapato. Hoje, temos um calçado para cada tipo específico de atividade física” (HARAWAY, 2013, p. 23).
De certa maneira, a ampla disponibilidade tecnológica oferece possibilidades de que o humano, por uma série de escolhas, modifique a si próprio e se transforme no que esta autora considera um ciborgue. Em seu texto seminal “Manifesto ciborgue –ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”, Haraway postula que a ideia de ciborgue é intimamente relacionada com a ideia de conexão em rede e tecnologia. O ciborgue é um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e, também, uma criatura de ficção (2013, p. 36).
Para essa autora, no final do século XX, “somos todos quimeras, híbridos –teóricos e fabricados –de máquina e organismo” (2013, p. 37). Com o aumento considerável de tecnologias disponíveis atualmente, temos uma maior presença de indivíduos ciborgues nos tempos que vivemos.
Kunzru (p.121, 2013) recorda que o engenheiro Manfre Clynes e o psiquiatra Nathan Kline desenvolveram o termo cyborg para descrever o conceito de um homem ampliado em seu artigo “Ciborgues e espaço” de 1960. No texto de cunho futurista, os autores imaginavam um experimento envolvendo um astronauta com a fisiologia comandada por injeções, pulmões substituídos por células energéticas etc. No artigo, discute-se a possibilidade de “fabricar humanos melhores ampliando suas capacidadespor meio de dispositivos artificiais” (KUNZRU, 2013, p. 122). Vale lembrar que o uso de insulina para controlar o metabolismo de diabéticos ou a inserção de marca-passos para regular batimentos cardíacos já são pensados desde os anos 1920 e são a base de discussão do conteúdo do texto de Clynes e Kline.
Logo, a partir destes pressupostos, é essencial termos em mente queatécnica não é, nem jamais foi, estranha ao homem. Ao contrário, em certo sentido, é ela que constitui o homem. Melhor ainda seria dizer que ela é a parte material de um híbrido, chamado sociotécnico. Isso porque na esfera do humano estão incluídos simultaneamente: as pessoas e seus pensamentos, as matérias, as ideias e representações culturais (SANTAELLA; CARDOSO, 2015, p.179)
Pode parecer até coisa de filme de ficção, mas está mais presente no nosso cotidiano do que imaginamos.
E você? Acredita que é um ciborgue?
Por Vicente Martin
Fontes:
HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue –ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: asvertigens do pós-humano. Autêntica: Belo Horizonte, 2013. p. 33-119.
KUNZRU, Hari. “Você é um ciborgue” –um encontro com Donna Haraway. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue:as vertigens do pós-humano. Autêntica: Belo Horizonte, 2013. p. 17-33.
SANTAELLA, Lucia; CARDOSO, Tarcísio. O desconcertante conceito de mediação técnica em Bruno Latour. MATRIZes,São Paulo, vol.9, n.1, p. 29–51, jan./jun. de 2015.